quarta-feira, 15 de abril de 2020

museu de mim - raysner

vim ao mundo
nove mil novecentos e noventa anos depois 
do seu nascimento

pelo que me contaram, você nasceu em Belém
terra que hoje chamam também
Palestina
num estábulo.

já eu, nasci em Belo Horizonte,
uma cidade do Brasil
país onde
grande parte das pessoas
assinam tudo que fazem 
usando o seu 
santo
(?)
nome
(em vão?)
(!)

me apresentaram a você quando completei
dois anos.
na ocasião, dizem
esperneei bastante
dando bola nenhuma pra aquele encontro
tampouco me importando com a grandeza
do seu coração que me acolhia,
conforme foi dito pelo padre
que ostentava o microfone que eu tanto
queria
por ser parecido com o da
Xuxa
(minha babá virtual, na época)
também conhecida como
apresentadora de TV que
não sei se você sabe
fez tanto sucesso
quanto você
nessa terra chamada
Brasil
que foi tetra campeão num torneio mundial de futebol

em
1994
ano no qual
te conhecia como
papai do céu

sem fazer nenhuma distinção entre você e o seu verdadeiro pai
o do céu

até porque
me contaram depois
já na catequese

você era ele, ele era você e
ambos eram
o espirito santo
que habitou nossa senhora
para fazer dela mãe do filho de Deus
criando mil complicações para moça
que, naquela época
teve de explicar ao seu marido José
seu outro pai
o daqui da terra
que estava grávida de um deus
sendo aquilo um plano d'O Deus
para o mundo
não sei se ele entendeu
eu, ainda criança,
custei a entender
aos sete anos
na catequese
toda essa história.

fato é que em 1994
me contaram que você morava no céu
e o céu era aquela pintura da santa ceia
pendurada na porta da cozinha
na casa do meu bisavô José
que morreu naquele ano
e eu não pude vê-lo enquanto era velado
na sala de sua casa
fiquei na cozinha
esperando meu bisavô surgir naquele quadro
já que todos me diziam
"seu avô foi morar com o papai do céu".

para minha decepção, meu bisavô não apareceu naquela pintura
sua
rodeado por seus doze apóstolos.

enquanto eu acreditei nessa história
minha avó sempre dizia que
com certeza eu seria padre
talvez por não conseguir traduzir em palavras
um pressentimento outro
dizer com todas as letras
"é uma criança viada"

até porque não conhecíamos essa expressão.
mas eu te conhecia
loiro de olhos azuis e de cabelo  liso a pele clara e sabia de cor
muito da sua história
fiz primeira comunhão
crismei, fui coroinha
crente
que te conhecia.

havia mais foto sua do que minha espalhada pela casa.

a gente até se parecia

engano meu.
constatei no meu primeiro teste de teatro
quando aos 14 tentei pegar o papel
que representava você
e me disseram
tem de ser alto magro e ter boa dicção
e eu não tinha
então esse era você
alto magro e de boa dicção
é claro

igual ao Alan,
o Serginho,
o Alonso
o Maicon

e eu não era como eles
eu era muito diferente
muito mesmo
um padre,
minha avó traduzia.

fiz judas
fiz joão batista, seu primo, quando criança
fiz povo
fiz joão
papel de você, não.

entrei para faculdade
pedindo a sua ajuda
todas as noites
antes da prova
de atuação
pedi
me ajuda


você
alto magro e com boa dicção

poderia, sei lá
me dar uma força
pelo menos para desembolar naquele texto
diante da banca

meu pai dizia para me apegar a você
eu já não sabia se isso era tudo balela
anos mais tarde ele me diria
por isso que a sua vida está assim

(assim como?)
assim.
assim.
(então,
não tinha nada a ver com ser padre?, minha avó quis saber)



a essa altura já  te enxergava
tampouco
alto branco peitoral definido cabelo liso loiro olho azul
te via em outros rostos
preto, mulher, travesti

é essa história de faculdade
de teatro, meu pai falava
a essa altura
quase
sem nenhuma
mágoa


apesar da nossa distãncia
e por causa dela e da
 minha vida estar
assim
não sei de que jeito
me apeguei a você
de novo
enquanto levava ele
o meu pai
carregado para o hospital.

pedi
te chamei
ei,
eu sei que a gente anda meio afastado
mas olha
salva meu pai


pedi também para sua mãe
para o padre Cícero
pra você de novo
para o seu pai
que é você
que é seu pai
salva o meu  pai
preto que nem você
homem que nem você
pobre que nem você

(...)

foi a vontade de deus
me disseram
que levou o meu pai
para junto do seu
pai
que é ao mesmo tempo você
como eu hoje sou um pouco
o meu pai
nessa minha vida assim
sem a culpa que tantos carregam
pelas decisões e revoluções armadas por você
de nome Jesus


que sigo reconhecendo
no rosto do pobre
do preto
do indígena
da mulher
das travestis
no carnaval
no teatro
na rafaella
na nina
na júlia
no tatá
no luiz
na luciana
no marcelinho
na pipe
no bottaro
no diego
na helaine
na jordania
na larissa
em mim